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terça-feira, 26 de outubro de 2010

MEMORIA SOCIAL, MUSEU E TRABALHO COMUNITÁRIO NA ROCINHA, RIO DE JANEIRO.

Antonio Carlos Firmino
Lygia Segala


Um café e um suco de maracujá. Um calor de verão “de chapar”. Começamos, às vésperas da festa do Padroeiro, nossa conversa – ou nossa prosa diz Firmino - para montar este texto. Um texto em diálogo. Trabalhamos sobre a memória com o sentido de recuperar no tempo os modos através dos quais foram tecidos os interesses e os resultados do nosso projeto .
Ao longo de 2009, através do ProExtMEC Cultura, identificamos, classificamos e organizamos o acervo de documentos textuais e iconográficos sobre a trajetória de moradores e iniciativas de trabalho comunitário na Rocinha , arquivado no Laboratório de Educação Patrimonial da UFF , com o intuito de abri-lo à consulta pública, especialmente às escolas da rede municipal na comunidade. Esse investimento de pesquisa e documentação realizado sustenta um objetivo estratégico de criação de um banco de dados e de consolidação de um museu na Rocinha. Exposições de um artista da comunidade na Universidade , a produção de um pequeno vídeo documentário , a participação com o Pipal no Segundo Dia da Cultura da Rocinha realizado pelo Fórum de Cultura, foram produtos acumulados, durante o ano, que também ajudaram a pensar em processo as especificidades de um museu na localidade.
A discussão contemporânea no país em torno dos sentidos e dos usos sociais de museus comunitários urbanos, em favelas e em bairros populares, vem crescendo e se complexificando em instituições públicas, universidades, associações, grupos representativos de moradores. O significado de comunidade, de imediato ligado à contigüidade geográfica, às praticas sócio-culturais comuns, relativiza-se por uma compreensão mais fina de redes políticas circunstancialmente localizadas, de um “tecido social móvel” . Os museus comunitários, interessados na construção de uma memória coletiva que organize um discurso identitário, expressam assim disputas simbólicas e tensões entre essas redes, flutuações de valores atribuídos a acontecimentos e às lembranças, mediações autorizadas no uso político do passado. O trabalho seletivo sobre a memória, definido nesses processos, envolve muitas negociações principalmente aquelas em torno da pesquisa e da documentação, do patrocínio, do mercado . Nas iniciativas, proclama-se, no mais das vezes, um outro discurso social sobre as favelas, avesso à razão mítica – o encantamento, a exotização das culturas populares – e ao miserabilismo - a vitimização da pobreza. Afirmam-se autorias, visibilidade histórica, relações de reconhecimento social.
No Rio de Janeiro, o Museu da Maré inaugurado em 2006, tornou-se uma referencia nacional, apresentando e problematizando a vida cotidiana na favela, a história do processo de ocupação do lugar, as reivindicações locais urbanas e políticas.
Na Rocinha, estimuladas pelas políticas públicas de Cultura, as preocupações já antigas com o conhecimento e a valorização da memória e da história local precisam-se, em algumas propostas, durante o I Fórum Cultural realizado na comunidade ( julho de 2007): o Museu Comunitário, a Casa de Bamba, a Rocinha dos Construtores, a re-edição do livro Varal de Lembranças.
Antonio Carlos Firmino: No Fórum, reunimos moradores com trabalho na área sócio-cultural. Eram artistas, cantadores, artesãos em dialogo direto com o governo do estado, mobilizados para o desenvolvimento cultural da localidade. Na época, eu coordenava os projetos sociais da ASPA e já fazia parte da equipe do Centro de Cultura e Educação Lúdica da Rocinha . Ao longo das discussões, pensamos na criação da Casa de Bamba para valorização do samba de raiz, do samba de roda, com a participação da Velha Guarda da Rocinha contando histórias. Já a Rocinha dos Construtores seria uma homenagem aos moradores, operários da construção civil, feita através de um trabalho de pesquisa e documentação sobre mestres construtores que edificaram a Rocinha e que fizeram e fazem a cidade do Rio de Janeiro. Pretendíamos assim dar continuidade aos registros fotográficos de edifícios com importância para a memória construída da Rocinha, testemunhos do engenho e da criatividade, marcos de valor afetivo para a identidade da comunidade. A idéia de um museu ou de um centro de memória que articulasse essas iniciativas começou a aparecer nesses debates. Não tínhamos ainda muita clareza sobre como coletar e organizar acervo, sobre como definir o lugar do projeto.
Lygia Segala: Nas nossas primeiras conversas, lembro que a idéia de definir um centro, um lugar fixo para o museu, era sempre muito problemática, tendo em vista o tamanho, as redes políticas, a diversidade interna da Rocinha.
ACF: A forma como a Rocinha se constituiu como favela não foi diferente de muitas outras do Rio de Janeiro. A falta de políticas públicas ou a política da ausência destinadas à população marginalizada sempre contribuiu para que houvesse os chamados “aglomerados sub-normais” (denominação utilizada atualmente pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A favela da Rocinha hoje ocupa uma área de 95 hectares ou 957.253m², segundo dados do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC - , e tem uma população estimada em mais 100.000 habitantes, localizada entre dois bairros nobres da zona Sul do Rio de Janeiro: Gávea e S. Conrado.
LS: Ao longo do processo de ocupação desta área, desde os anos 1920, as diferentes ruas, redes de vizinhança foram definindo sub-áreas de moradia como a rua 1, rua 2, Dioneia, Bairro Barcelos e tantas outras. Luis Antonio Machado fala de uma “estrutura atomística na favela” . Diante deste quadro, a idéia de um museu itinerante, em circulação, se afirma.
ACF: É bom lembrar que em 2007, já desenvolvíamos o projeto da Ação Griô, apoiada pelo Ministério da Cultura, para a inserção da tradição oral na escola pública. Tentávamos identificar e mobilizar moradores mais antigos de diferentes áreas para contar historias de como era a Rocinha tempos atrás, a partir da ludicidade. Nessas prosas Griô, com café e bolo, os mais velhos falavam sobre as brincadeiras dos seus tempos de meninos. Era jogo de bola, patinete, ciranda, descidas de rolimã que se emendavam, nas recordações, às corridas de baratinha na estrada da Gávea que faziam sucesso nos anos 1930. A partir dessas histórias e de outras do Varal de Lembranças criamos o Mapa-jogo: no caminho, uma Rocinha lúdica - um jogo participativo de trilha que permite uma visita a diferentes tempos e localidades da Rocinha.
LS: Já no Varal, havia essa preocupação em fazer entrevistas em vários pontos, com redes diversas de moradores. O trabalho, que se desdobrou no livro, surgiu na minha sala de aula, da Escola comunitária da ASPA, em 1977. Nos livros da escola não encontrávamos qualquer referencia às favelas da cidade nem à Rocinha. Os textos disponíveis quase sempre descreviam esses “aglomerados” pelo viés da patologia social: favela era câncer urbano, espaço social “onde reina a contravenção e a vagabundagem”. Tratamos então de ouvir as versões dos moradores sobre a “história do morro”, desmontar, pelo confronto de dados, as sentenças preconceituosas da história oficial, investir na afirmação de uma nova identidade social não estigmatizada. Esse exercício compilatório mobilizou muito rapidamente os alunos, suas redes de relações, membros da diretoria da Associação de Moradores . Durante dois anos, recolhemos entrevistas, fotos, documentos, cartas, recortes de jornal. Organizamos os depoimentos e os documentos seguindo a lógica de um desfile de carnaval, mostrando versões concorrentes de lembranças contadas. Editamos o livro. Na época, ele foi utilizado nas escolas da Rocinha, rendendo histórias infantis, exposições, murais ilustrados. Foi emocionante falar sobre o Varal, junto com a Tânia , que organizou o livro comigo, mais de vinte anos depois, na Jornada de Educação e Cultura que vocês organizaram.
ACF: Esta Jornada (junho de 2007) foi um espaço para a reflexão sobre educação e cultura, de forma propositiva, voltada para as educadoras, novas lideranças e antigas. Queríamos buscar uma ação que contribuísse para a melhoria da educação na comunidade, onde a questão cultural, as brincadeiras, a Memória e a Historia locais fossem levadas em consideração.
Lembro que na Jornada, o Mario Chagas, naquela época do Departamento de Museus do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], nos lançou um desafio: escrever um projeto para a criação de um museu na Rocinha. Começamos a buscar documentos, reunir papéis, informações. A idéia do Sankofa Museu foi tomando corpo . Sankofa é uma palavra Akan das nações africanas de Ghana e da Costa do Marfim que significa "devemos olhar para trás e recuperar nosso passado assim podemos nos mover para frente; assim compreendemos porque e como viemos a ser quem somos nós hoje." Uma das formas de representação baseia-se na imagem de um pássaro mítico que está com os pés plantados firmemente para frente e com a cabeça olhando pra trás, como um certo guia para planejar o futuro.

Esta simbologia, a meu ver, resume a busca pelo direito da Memória e da Historia. Esse é um passo muito importante para que uma comunidade, seja ela qual for, se sinta motivada, estimulada para contribuir na construção de um presente melhor pois, o futuro sempre será o amanhã. O direito à Memória e à Historia, registrada em livros, peças teatrais, filmes e Museu vem trazendo muitos questionamentos entre intelectuais, autoridades e comunidades. Para que?! Em relação a Museu, já não basta os que existem na cidade? Para que criar um Museu dentro da Favela? Imaginem só se todas as Favelas resolverem querer ter seu Museu comunitário! Só terão visitantes da Favela e de Favelas que tenham o controle da mesma facção ou milícia! Isto infelizmente não irá a frente, será um gasto de recursos, em muitos casos públicos! Nestas localidades a gestão pública não conseguiu sequer resolver o problema de segurança! Com certeza são esses os discursos que correm sobre o direito à Memória e à Historia do Favelado.
LS: Foi nesse momento da Jornada que nos aproximamos mais, estabelecendo as primeiras pontes entre o trabalho de vocês e as linhas de ação do LABOEP - UFF . Fizemos então acordos em torno da disponibilização do nosso acervo, da realização de seminário sobre Museu comunitário . Fomos construindo um sentido de parceria na extensão universitária distinto do assistencialismo e da tutela dos “outros”. Escrevemos o projeto a muitas mãos e apostamos na realização coletiva do trabalho.
ACF: É certo que as realidades dos Moradores das Favelas sempre foram escritas de fora para dentro sob os olhares racistas, preconceituosos e excludentes, e pela academia como objeto de pesquisa. Quando o morador de uma Favela ou da Periferia tem a oportunidade de se expressar escrevendo a sua própria realidade isto incomoda. Os que são contra, logo expressam: nós já relatamos sobre o modo de vida dos moradores desta classe social! Temos muitas publicações sobre as favelas! O que este pessoal quer mais?
A idéia de criar um museu na Rocinha não é nova. O que está colocado na ordem do dia é o direito à Memória e à Historia escrita ou relatada por aqueles que sempre foram excluídos desde processo. Inúmeros profissionais ligados à cultura, educação e militantes sociais locais, sempre tentaram manter viva, na memória da comunidade, as suas lutas pelo direito básico à moradia, à educação, à saúde, fazendo assim Historia. As diversas formas de reivindicações por melhorias para sua localidade sempre se transformaram em conflito com os poderes públicos. A política da ausência é contribuinte da exclusão.
LS: Nas notícias dos jornais, reunidas no acervo do nosso projeto Proext MEC Cultura, é recorrente o lugar das favelas nas páginas policiais. Lembro como foi difícil, nos anos 1970, mesmo através de contatos com jornalistas conhecidos, conseguir as primeiras reportagens sobre o trabalho comunitário, as ações reivindicatórias, a associação de moradores. Depois, com a efervescência do movimento de remoção X urbanização de favelas, com a participação ativa da Igreja Católica – a lembrar a visita do Papa à favela do Vidigal - , houve uma certa estabilização desta pauta de interesses. Os textos publicados, no período, pelo Tagarela, jornal comunitário, são contrapontos preciosos para entender essa trama de versões sobre as políticas sociais e urbanas.
Todos esses documentos, organizados durante o projeto, constituem uma base de referência importante para o Museu, mapeando pessoas, acontecimentos e lugares de apoio à memória suscetíveis de se tornar tradição . Os abaixo-assinados, fotos, noticias, musicas em torno da reivindicação e da conquista da primeira passarela sobre a auto-estrada Lagoa-Barra naqueles anos, foram reunidas em um dossiê a ser entregue a Oscar Niemeyer, responsável, hoje, pelo projeto da nova passarela ligada às obras do PAC. A idéia é convencê-lo a criar, nesse desenho recente, um monumento revelador e comemorativo daquele momento histórico importante nas lutas da comunidade. Outros monumentos começam a ser reconhecidos na Rocinha.
ACF: Nós imaginamos o Museu, por agora, como itinerante: exposições que passando pelos becos e ruas da Rocinha, possam apresentar dados, documentos, fotos, objetos da sua história na cidade. Antes tentaremos fazer contato com instituições, pessoas desses cantos, preparando a visita. A exposição seria levada por arautos, jovens com gosto e experiência com o teatro. Na rua, abrirão rodas de conversas, trocas de conhecimentos. A expectativa é discutir com os moradores o próprio sentido do Museu. Se interessados, poderiam até doar, em confiança, algum documento, um objeto, alargando a mostra, as lembranças. Importa trazer para esse sentido de exposição móvel, a prosa Griô, a contação de histórias. Queremos filmar e fotografar esses eventos para apresentá-los nas escolas estimulando novas atividades.
Estamos agora preparando o “Chá de Museu” e a Grafitagem de muros de arrimo e postes na estrada da Gávea , tendo como tema os acontecimentos da história da Rocinha. Estes eventos preparam o lançamento público do Museu, depois do Carnaval. As atividades estão a todo vapor!!
Nós do Centro Lúdico, nos tornamos Ponto de Cultura, aprovado em Edital do Ministério da Cultura, em 2004. Avançamos. Hoje temos o grande e prazeroso desafio de contribuir para que a Rocinha, considerada maior favela do Rio de Janeiro, possa ter seu espaço de Memória e Historia . O Centro Lúdico atua e está presente no Fórum Cultural da Rocinha e nos Fóruns de Pontos de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. É muito importante estar insistindo sobre o nosso direto aos bens culturais da cidade!
LS: De fato, todos esses anos de trabalho, de preparação, já fazem parte da construção do Museu que vai aos poucos se definindo como um exercício de mobilização, de troca de experiências, de reivindicação identitária. Comparando com iniciativas afins talvez fosse importante refletir ainda, a partir do Museu, sobre os programas de turismo cultural ou turismo social que tem a favela como lugar de visitação.
ACF: O turismo na Rocinha é um grande desafio. Segundo dados das Associações de moradores, instituições locais e o Forum de turismo, a Rocinha recebe, por mês, mais de 1.500 turistas! Estes números são muito interessantes em se tratando de uma favela. Comentar sobre Turismo e Museu para nós do Centro de Cultura e Educação Lúdica é considerar, em primeiro lugar que estamos pensando em um espaço de memória/ historia dentro da favela que priorize e legitime o que é importante do ponto de vista do morador. É ele sobretudo que deve usar o Museu. Em segundo lugar, que temos críticas ao tipo de turismo exotic tours que vemos por aqui, Esta é uma questão que sempre gerou polêmica na comunidade. Ver a miserabilidade dos favelados a partir da ausência do poder publico, ver a comunidade como passiva (nem sempre) diante disso, parece que é o que chama mais a atenção dos gringos.
Hoje, a Rocinha recebe um bom números de turistas mas os moradores não se apropriam das informações sobre o bairro. O Forum de Turismo busca realizar uma ação onde a comunidade possa ter o direito ao diálogo no sentido de definir o que seria interessante disponibilizar para os turistas.
Memória e Historia sempre foram espaços de poder no conjunto de qualquer sociedade. Em se tratando da nossa podemos dizer que é muito perverso. Temos o direito a ter um espaço da nossa Memória e Historia. Isto não é criar um Museu-gueto, como vem sendo colocado por muitos. Queremos um espaço de dialogo com o conjunto da sociedade. Os chamados “museus comunitários” ou “museus sociais” por estarem em territórios desprivilegiados, sem os direitos da cidade, sofrem com este estigma.
LS: Nesse movimento parece importar mais do que a consagração do lugar de memória, a vontade de memória.



Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2010

domingo, 10 de outubro de 2010

MEMORIA SOCIAL, MUSEU E TRABALHO COMUNITÁRIO NA ROCINHA, RIO DE JANEIRO.





MEMORIA SOCIAL, MUSEU E TRABALHO COMUNITÁRIO NA ROCINHA, RIO DE JANEIRO.





Antonio Carlos Firmino
Lygia Segala




Um café e um suco de maracujá. Um calor de verão “de chapar”. Começamos, às vésperas da festa do Padroeiro, nossa conversa – ou nossa prosa diz Firmino - para montar este texto. Um texto em diálogo. Trabalhamos sobre a memória com o sentido de recuperar no tempo os modos através dos quais foram tecidos os interesses e os resultados do nosso projeto .
Ao longo de 2009, através do ProExtMEC Cultura, identificamos, classificamos e organizamos o acervo de documentos textuais e iconográficos sobre a trajetória de moradores e iniciativas de trabalho comunitário na Rocinha , arquivado no Laboratório de Educação Patrimonial da UFF , com o intuito de abri-lo à consulta pública, especialmente às escolas da rede municipal na comunidade. Esse investimento de pesquisa e documentação realizado sustenta um objetivo estratégico de criação de um banco de dados e de consolidação de um museu na Rocinha. Exposições de um artista da comunidade na Universidade , a produção de um pequeno vídeo documentário , a participação com o Pipal no Segundo Dia da Cultura da Rocinha realizado pelo Fórum de Cultura, foram produtos acumulados, durante o ano, que também ajudaram a pensar em processo as especificidades de um museu na localidade.
A discussão contemporânea no país em torno dos sentidos e dos usos sociais de museus comunitários urbanos, em favelas e em bairros populares, vem crescendo e se complexificando em instituições públicas, universidades, associações, grupos representativos de moradores. O significado de comunidade, de imediato ligado à contigüidade geográfica, às praticas sócio-culturais comuns, relativiza-se por uma compreensão mais fina de redes políticas circunstancialmente localizadas, de um “tecido social móvel” . Os museus comunitários, interessados na construção de uma memória coletiva que organize um discurso identitário, expressam assim disputas simbólicas e tensões entre essas redes, flutuações de valores atribuídos a acontecimentos e às lembranças, mediações autorizadas no uso político do passado. O trabalho seletivo sobre a memória, definido nesses processos, envolve muitas negociações principalmente aquelas em torno da pesquisa e da documentação, do patrocínio, do mercado . Nas iniciativas, proclama-se, no mais das vezes, um outro discurso social sobre as favelas, avesso à razão mítica – o encantamento, a exotização das culturas populares – e ao miserabilismo - a vitimização da pobreza. Afirmam-se autorias, visibilidade histórica, relações de reconhecimento social.
No Rio de Janeiro, o Museu da Maré inaugurado em 2006, tornou-se uma referencia nacional, apresentando e problematizando a vida cotidiana na favela, a história do processo de ocupação do lugar, as reivindicações locais urbanas e políticas.
Na Rocinha, estimuladas pelas políticas públicas de Cultura, as preocupações já antigas com o conhecimento e a valorização da memória e da história local precisam-se, em algumas propostas, durante o I Fórum Cultural realizado na comunidade ( julho de 2007): o Museu Comunitário, a Casa de Bamba, a Rocinha dos Construtores, a re-edição do livro Varal de Lembranças.
Antonio Carlos Firmino: No Fórum, reunimos moradores com trabalho na área sócio-cultural. Eram artistas, cantadores, artesãos em dialogo direto com o governo do estado, mobilizados para o desenvolvimento cultural da localidade. Na época, eu coordenava os projetos sociais da ASPA e já fazia parte da equipe do Centro de Cultura e Educação Lúdica da Rocinha . Ao longo das discussões, pensamos na criação da Casa de Bamba para valorização do samba de raiz, do samba de roda, com a participação da Velha Guarda da Rocinha contando histórias. Já a Rocinha dos Construtores seria uma homenagem aos moradores, operários da construção civil, feita através de um trabalho de pesquisa e documentação sobre mestres construtores que edificaram a Rocinha e que fizeram e fazem a cidade do Rio de Janeiro. Pretendíamos assim dar continuidade aos registros fotográficos de edifícios com importância para a memória construída da Rocinha, testemunhos do engenho e da criatividade, marcos de valor afetivo para a identidade da comunidade. A idéia de um museu ou de um centro de memória que articulasse essas iniciativas começou a aparecer nesses debates. Não tínhamos ainda muita clareza sobre como coletar e organizar acervo, sobre como definir o lugar do projeto.
Lygia Segala: Nas nossas primeiras conversas, lembro que a idéia de definir um centro, um lugar fixo para o museu, era sempre muito problemática, tendo em vista o tamanho, as redes políticas, a diversidade interna da Rocinha.
ACF: A forma como a Rocinha se constituiu como favela não foi diferente de muitas outras do Rio de Janeiro. A falta de políticas públicas ou a política da ausência destinadas à população marginalizada sempre contribuiu para que houvesse os chamados “aglomerados sub-normais” (denominação utilizada atualmente pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A favela da Rocinha hoje ocupa uma área de 95 hectares ou 957.253m², segundo dados do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC - , e tem uma população estimada em mais 100.000 habitantes, localizada entre dois bairros nobres da zona Sul do Rio de Janeiro: Gávea e S. Conrado.
LS: Ao longo do processo de ocupação desta área, desde os anos 1920, as diferentes ruas, redes de vizinhança foram definindo sub-áreas de moradia como a rua 1, rua 2, Dioneia, Bairro Barcelos e tantas outras. Luis Antonio Machado fala de uma “estrutura atomística na favela” . Diante deste quadro, a idéia de um museu itinerante, em circulação, se afirma.
ACF: É bom lembrar que em 2007, já desenvolvíamos o projeto da Ação Griô, apoiada pelo Ministério da Cultura, para a inserção da tradição oral na escola pública. Tentávamos identificar e mobilizar moradores mais antigos de diferentes áreas para contar historias de como era a Rocinha tempos atrás, a partir da ludicidade. Nessas prosas Griô, com café e bolo, os mais velhos falavam sobre as brincadeiras dos seus tempos de meninos. Era jogo de bola, patinete, ciranda, descidas de rolimã que se emendavam, nas recordações, às corridas de baratinha na estrada da Gávea que faziam sucesso nos anos 1930. A partir dessas histórias e de outras do Varal de Lembranças criamos o Mapa-jogo: no caminho, uma Rocinha lúdica - um jogo participativo de trilha que permite uma visita a diferentes tempos e localidades da Rocinha.
LS: Já no Varal, havia essa preocupação em fazer entrevistas em vários pontos, com redes diversas de moradores. O trabalho, que se desdobrou no livro, surgiu na minha sala de aula, da Escola comunitária da ASPA, em 1977. Nos livros da escola não encontrávamos qualquer referencia às favelas da cidade nem à Rocinha. Os textos disponíveis quase sempre descreviam esses “aglomerados” pelo viés da patologia social: favela era câncer urbano, espaço social “onde reina a contravenção e a vagabundagem”. Tratamos então de ouvir as versões dos moradores sobre a “história do morro”, desmontar, pelo confronto de dados, as sentenças preconceituosas da história oficial, investir na afirmação de uma nova identidade social não estigmatizada. Esse exercício compilatório mobilizou muito rapidamente os alunos, suas redes de relações, membros da diretoria da Associação de Moradores . Durante dois anos, recolhemos entrevistas, fotos, documentos, cartas, recortes de jornal. Organizamos os depoimentos e os documentos seguindo a lógica de um desfile de carnaval, mostrando versões concorrentes de lembranças contadas. Editamos o livro. Na época, ele foi utilizado nas escolas da Rocinha, rendendo histórias infantis, exposições, murais ilustrados. Foi emocionante falar sobre o Varal, junto com a Tânia , que organizou o livro comigo, mais de vinte anos depois, na Jornada de Educação e Cultura que vocês organizaram.
ACF: Esta Jornada (junho de 2007) foi um espaço para a reflexão sobre educação e cultura, de forma propositiva, voltada para as educadoras, novas lideranças e antigas. Queríamos buscar uma ação que contribuísse para a melhoria da educação na comunidade, onde a questão cultural, as brincadeiras, a Memória e a Historia locais fossem levadas em consideração.
Lembro que na Jornada, o Mario Chagas, naquela época do Departamento de Museus do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], nos lançou um desafio: escrever um projeto para a criação de um museu na Rocinha. Começamos a buscar documentos, reunir papéis, informações. A idéia do Sankofa Museu foi tomando corpo . Sankofa é uma palavra Akan das nações africanas de Ghana e da Costa do Marfim que significa "devemos olhar para trás e recuperar nosso passado assim podemos nos mover para frente; assim compreendemos porque e como viemos a ser quem somos nós hoje." Uma das formas de representação baseia-se na imagem de um pássaro mítico que está com os pés plantados firmemente para frente e com a cabeça olhando pra trás, como um certo guia para planejar o futuro.

Esta simbologia, a meu ver, resume a busca pelo direito da Memória e da Historia. Esse é um passo muito importante para que uma comunidade, seja ela qual for, se sinta motivada, estimulada para contribuir na construção de um presente melhor pois, o futuro sempre será o amanhã. O direito à Memória e à Historia, registrada em livros, peças teatrais, filmes e Museu vem trazendo muitos questionamentos entre intelectuais, autoridades e comunidades. Para que?! Em relação a Museu, já não basta os que existem na cidade? Para que criar um Museu dentro da Favela? Imaginem só se todas as Favelas resolverem querer ter seu Museu comunitário! Só terão visitantes da Favela e de Favelas que tenham o controle da mesma facção ou milícia! Isto infelizmente não irá a frente, será um gasto de recursos, em muitos casos públicos! Nestas localidades a gestão pública não conseguiu sequer resolver o problema de segurança! Com certeza são esses os discursos que correm sobre o direito à Memória e à Historia do Favelado.
LS: Foi nesse momento da Jornada que nos aproximamos mais, estabelecendo as primeiras pontes entre o trabalho de vocês e as linhas de ação do LABOEP - UFF . Fizemos então acordos em torno da disponibilização do nosso acervo, da realização de seminário sobre Museu comunitário . Fomos construindo um sentido de parceria na extensão universitária distinto do assistencialismo e da tutela dos “outros”. Escrevemos o projeto a muitas mãos e apostamos na realização coletiva do trabalho.
ACF: É certo que as realidades dos Moradores das Favelas sempre foram escritas de fora para dentro sob os olhares racistas, preconceituosos e excludentes, e pela academia como objeto de pesquisa. Quando o morador de uma Favela ou da Periferia tem a oportunidade de se expressar escrevendo a sua própria realidade isto incomoda. Os que são contra, logo expressam: nós já relatamos sobre o modo de vida dos moradores desta classe social! Temos muitas publicações sobre as favelas! O que este pessoal quer mais?
A idéia de criar um museu na Rocinha não é nova. O que está colocado na ordem do dia é o direito à Memória e à Historia escrita ou relatada por aqueles que sempre foram excluídos desde processo. Inúmeros profissionais ligados à cultura, educação e militantes sociais locais, sempre tentaram manter viva, na memória da comunidade, as suas lutas pelo direito básico à moradia, à educação, à saúde, fazendo assim Historia. As diversas formas de reivindicações por melhorias para sua localidade sempre se transformaram em conflito com os poderes públicos. A política da ausência é contribuinte da exclusão.
LS: Nas notícias dos jornais, reunidas no acervo do nosso projeto Proext MEC Cultura, é recorrente o lugar das favelas nas páginas policiais. Lembro como foi difícil, nos anos 1970, mesmo através de contatos com jornalistas conhecidos, conseguir as primeiras reportagens sobre o trabalho comunitário, as ações reivindicatórias, a associação de moradores. Depois, com a efervescência do movimento de remoção X urbanização de favelas, com a participação ativa da Igreja Católica – a lembrar a visita do Papa à favela do Vidigal - , houve uma certa estabilização desta pauta de interesses. Os textos publicados, no período, pelo Tagarela, jornal comunitário, são contrapontos preciosos para entender essa trama de versões sobre as políticas sociais e urbanas.
Todos esses documentos, organizados durante o projeto, constituem uma base de referência importante para o Museu, mapeando pessoas, acontecimentos e lugares de apoio à memória suscetíveis de se tornar tradição . Os abaixo-assinados, fotos, noticias, musicas em torno da reivindicação e da conquista da primeira passarela sobre a auto-estrada Lagoa-Barra naqueles anos, foram reunidas em um dossiê a ser entregue a Oscar Niemeyer, responsável, hoje, pelo projeto da nova passarela ligada às obras do PAC. A idéia é convencê-lo a criar, nesse desenho recente, um monumento revelador e comemorativo daquele momento histórico importante nas lutas da comunidade. Outros monumentos começam a ser reconhecidos na Rocinha.
ACF: Nós imaginamos o Museu, por agora, como itinerante: exposições que passando pelos becos e ruas da Rocinha, possam apresentar dados, documentos, fotos, objetos da sua história na cidade. Antes tentaremos fazer contato com instituições, pessoas desses cantos, preparando a visita. A exposição seria levada por arautos, jovens com gosto e experiência com o teatro. Na rua, abrirão rodas de conversas, trocas de conhecimentos. A expectativa é discutir com os moradores o próprio sentido do Museu. Se interessados, poderiam até doar, em confiança, algum documento, um objeto, alargando a mostra, as lembranças. Importa trazer para esse sentido de exposição móvel, a prosa Griô, a contação de histórias. Queremos filmar e fotografar esses eventos para apresentá-los nas escolas estimulando novas atividades.
Estamos agora preparando o “Chá de Museu” e a Grafitagem de muros de arrimo e postes na estrada da Gávea , tendo como tema os acontecimentos da história da Rocinha. Estes eventos preparam o lançamento público do Museu, depois do Carnaval. As atividades estão a todo vapor!!
Nós do Centro Lúdico, nos tornamos Ponto de Cultura, aprovado em Edital do Ministério da Cultura, em 2004. Avançamos. Hoje temos o grande e prazeroso desafio de contribuir para que a Rocinha, considerada maior favela do Rio de Janeiro, possa ter seu espaço de Memória e Historia . O Centro Lúdico atua e está presente no Fórum Cultural da Rocinha e nos Fóruns de Pontos de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. É muito importante estar insistindo sobre o nosso direto aos bens culturais da cidade!
LS: De fato, todos esses anos de trabalho, de preparação, já fazem parte da construção do Museu que vai aos poucos se definindo como um exercício de mobilização, de troca de experiências, de reivindicação identitária. Comparando com iniciativas afins talvez fosse importante refletir ainda, a partir do Museu, sobre os programas de turismo cultural ou turismo social que tem a favela como lugar de visitação.
ACF: O turismo na Rocinha é um grande desafio. Segundo dados das Associações de moradores, instituições locais e o Forum de turismo, a Rocinha recebe, por mês, mais de 1.500 turistas! Estes números são muito interessantes em se tratando de uma favela. Comentar sobre Turismo e Museu para nós do Centro de Cultura e Educação Lúdica é considerar, em primeiro lugar que estamos pensando em um espaço de memória/ historia dentro da favela que priorize e legitime o que é importante do ponto de vista do morador. É ele sobretudo que deve usar o Museu. Em segundo lugar, que temos críticas ao tipo de turismo exotic tours que vemos por aqui, Esta é uma questão que sempre gerou polêmica na comunidade. Ver a miserabilidade dos favelados a partir da ausência do poder publico, ver a comunidade como passiva (nem sempre) diante disso, parece que é o que chama mais a atenção dos gringos.
Hoje, a Rocinha recebe um bom números de turistas mas os moradores não se apropriam das informações sobre o bairro. O Forum de Turismo busca realizar uma ação onde a comunidade possa ter o direito ao diálogo no sentido de definir o que seria interessante disponibilizar para os turistas.
Memória e Historia sempre foram espaços de poder no conjunto de qualquer sociedade. Em se tratando da nossa podemos dizer que é muito perverso. Temos o direito a ter um espaço da nossa Memória e Historia. Isto não é criar um Museu-gueto, como vem sendo colocado por muitos. Queremos um espaço de dialogo com o conjunto da sociedade. Os chamados “museus comunitários” ou “museus sociais” por estarem em territórios desprivilegiados, sem os direitos da cidade, sofrem com este estigma.
LS: Nesse movimento parece importar mais do que a consagração do lugar de memória, a vontade de memória.



Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 2010

Negar o passado

Negar o passado é nós negarmos principalmente quando de vontade própria, mas, quando somos levados a ignoramos – nos, desconsiderando o passado em função de um, projeto de reconstrução de uma Nação, os danos para o futuro são incalculáveis!!!